Desde março de 2014 convivemos com a operação lava-jato. Sem dúvida alguma, aquela que mais repercutiu na História de nosso País e certamente uma das que mais chamou a atenção da comunidade internacional. Não apenas pela expressiva movimentação de recursos analisados, mas também por envolver “figurões” dos setores público e empresarial brasileiros. Até hoje foram expedidos 27 mandados de prisões e de busca e apreensão de documentos.
A toda hora a mídia traz uma novidade das investigações. Homens públicos citados nas operações dão entrevistas, normalmente criticando os procedimentos e quase sempre negando o seu envolvimento no caso. Desconversam, insinuam, agridem e gesticulam. Tudo numa tentativa de desfazerem o “mal entendido”. “Não tenho nada a ver com isso. Vou provar a minha inocência”. São as frases mais comumente ouvidas.
Mas esse é somente o lado visível da lava-jato. Aquela que todo mundo enxerga. Ao lado dessa parafernalha de coisas existe um cenário desabitado, desconhecido do grande público e dos meios de comunicação.
Julgar não é tarefa fácil. Ainda que nobre, ela carrega dentro de si um amontado de incertezas, dúvidas e ansiedades. Dependendo da complexidade do caso, inúmeras alternativas podem desfilar diante do julgador. Principalmente quando o exercício da função atrai os holofotes de todo um país, de todo um povo, de toda uma sociedade, sequiosa por melhores dias e abatida por tantos desmandos e impunidades.
Ainda que nobre, a atividade julgadora pode ser sinônimo de dor e sofrimento. Não vou muito longe. Os próprios colegas de profissão podem ser os primeiros algozes. Em situações como a da lava-jato a ciumeira bate forte, principalmente dos escalões mais elevados. “Quem é esse juiz que tanto faz barulho?”. “De onde ele saiu?”.
Isso sem falar nas costumeiras críticas saídas da boca de quem teve o nome citado nas operações ou gravações. Tais críticas repercutem muito. Justamente porque não são proferidas por pessoas comuns. É gente graúda, influente, profissional na arte de inverter os fatos (e as leis). Gente que sabe muito bem o que está dizendo e que tem em torno de si um público numeroso, pronto pra fazer ecoar suas lamúrias e lamentações.
Quase sempre as queixas retratam insatisfações exacerbadas, recheadas de ódio e rancor. Condenam quem os condena. Ridicularizam quem os ridiculariza. Atacam quem os pegou com a mão na boca da botija. Por mais bem preparado que seja o magistrado, não há como sair ileso dos dardos desferidos.
Um trabalho bem feito não fica incólume aos ataques dos agressores. Todos numa tentativa louca de desacreditar, de difamar, de apontar falhas onde elas não existem. E ainda que haja um ou outro equívoco, o fato é logo proclamado aos quatro ventos, procurando sempre inverter os papéis.
À maneira de uma tsunami, esse turbilhão de coisas acaba penetrando fundo na vida profissional do julgador. Ante a tantas críticas é natural que as dúvidas comecem a surgir. A incerteza bate à porta de seu Gabinete. Algumas decisões tomadas – embaladas até então pela segurança e o equilíbrio – cedem lugar a retrospectivas e reavaliações. Nessas condições, é inevitável uma volta ao passado. Viagem difícil de ser percorrida, pois quase sempre os primeiros passos são dados sem companhia, tendo por companheira apenas a reconstrução dos fatos, a releitura das provas e da legislação aplicada. É dura essa viagem. Principalmente quando o retorno traz consigo alguma centelha da incerteza, por mais minúscula que seja, mas que outrora fora erradicada totalmente da mesa de trabalho.
Mas as dores de quem julga não tomam conta apenas de sua vida profissional. Operações como as da lava-jato não respeitam limites. Não reconhecem obstáculos. Ela é como uma grande avalanche. Sai destruindo tudo que está a sua frente.
Atividades simples, rotineiras, necessárias a qualquer mortal, acabam sendo atingidas pelas investigações.
O jantar, o cinema, o café da tarde, a visita a uma padaria já não se faz como antes. O sono já não é o mesmo. Como um raio de sol, a lava-jato entra por todas as frestas. Não apenas o julgador convive mais com ela. Também sua família e seus amigos participam do solene momento, sendo corroídos, repetidas vezes, pelo mesmo ácido que impregna o magistrado.
O ritmo é intenso. Uma verdadeira maratona. Mesmo no leito da cama, é inevitável não pensar na próxima etapa e nos procedimentos do dia seguinte. Nesse ambiente conturbado, até mesmo os sonhos fazem questão de lembrá-lo de algumas passagens já percorridas; ou apresentar-lhe um contexto novo, normalmente temido e não desejado. Não raro, a figura de um terapeuta se faz presente, numa tentativa de dar vazão a ansiedades, medos e incertezas que tomam conta da mente do julgador. Afinal de contas, por trás do magistrado está o ser humano, com todas as suas limitações e interpretações dos fatos que estão ao seu redor. Em ocasiões mais específicas, até os medicamentos passam a ser coadjuvantes dessa caminhada.
Muitos magistrados pelo Brasil sabem exatamente do que estou falando e do que Sérgio Moro tem sofrido. Eu mesmo já passei por situações bem semelhantes. Sei, como ele e como tantos outros, o quanto é difícil fazer justiça nesse País. A força do mal é grande. O Poder protege-se a si mesmo. Mover-se por entre suas estruturas não é tarefa fácil. Exige destreza, equilíbrio, conhecimento profundo e uma ajuda forte lá do Alto.
Assim como o mensalão, a lava-jato nos dá a oportunidade de conhecermos melhor os bastidores do Poder e os interesses escusos que lá convivem. Como os crimes e as manobras são engendrados. Onde os discursos de palanque ganham seu verdadeiro significado.
É comum vermos pessoas que tiveram experiências de quase morte retornarem à sua rotina com uma outra perspectiva sobre a vida. Trazem um olhar mais positivo a respeito da realidade que as cerca.
Espero que a lava-jato também tenha essa virtude. Oremos por Sérgio Moro.
ALIPIO REIS FIRMO FILHO
Conselheiro Substituto/TCE-AM