Na tentativa de conter o déficit orçamentário, estimado em 170 bilhões de reais para 2017, o Governo Temer propôs a chamada PEC 241. A regra é a seguinte: os gastos totais com a despesa primária para 2017 será igual à despesa primária realizada em 2016 mais a respectiva inflação medida pelo IPCA – ou outro índice que vier a substituí-lo. Para os exercícios subsequentes, o teto dessas despesas terá por base sempre o que for gasto no exercício anterior mais a inflação do respectivo exercício.
A Proposta de Emenda Constitucional tem acirrado calorosos debates em todo o País. Talvez por sua ousadia já que até hoje nunca houve uma proposta tão ambiciosa no setor público brasileiro, no tocante ao controle dos gastos governamentais. Já passamos por inúmeros planos econômicos (Plano Cruzado, em 1986; Plano Bresser, em 1987; Plano Verão, em 1989; Plano Collor, em 1990; Plano Real, em 1993) cada um querendo estancar, à sua maneira, problemas crônicos que se arrastavam por décadas. Mas as medidas econômicas eram pontuais e tinham, em regra, um endereço: a iniciativa privada. Normalmente, as despesas governamentais passavam ao largo dessas medidas. Só aqui ou ali limitavam os gastos públicos, mas, ainda assim, muito superficialmente.
A PEC 241 não é bem um plano econômico. Mas ela fere de morte, pelo menos durante os próximos 10 anos (a PEC segura os gastos por 20 anos, mas autoriza sua revisão no final da primeira década), o vertiginoso crescimento das despesas primárias governamentais federais que, conforme sabemos, nos últimos 04 anos, tornaram-se insustentáveis. Por despesas primárias entenda-se, basicamente, três blocos de dispêndios que integram os gastos totais da União: a folha de pagamento e todos os seus encargos, as despesas com sua manutenção (água, energia elétrica, conservação, limpeza, etc.) e os investimentos.
Mas quais são os contornos da PEC 241? Quais serão suas principais implicações caso ela seja aprovada no Senado (a Câmara dos Deputados já a aprovou em dois turnos)?
A primeira grande implicação é que a medida é inegavelmente restritiva, sob o ponto de vista macroeconômico. E o que isso significa? Significa que ela atuará desestimulando a criação de emprego e renda, pelo menos nos próximos 10 anos. Sabemos que o governo é um grande consumidor de bens e serviços numa economia. E faz isso por meio de seu orçamento. O teto fixado pela PEC 241 irá fazer com que a União – a PEC não atinge estados e municípios – compre menos do setor privado. Ora, menor demanda por bens e serviços significa desestímulos à produção, com todas as suas consequências (desemprego, queda na renda, inflação, etc.). O problema é que essa queda da participação da União na demanda agregada é linear, ou seja, ela não se fará presente apenas no período de recessão – como vivemos no presente –, mas também quando experimentarmos condições econômicas mais confortáveis. Leonardo Ribeiro, especialista em contas públicas, pontua que “a regra não leva em consideração que estamos em um estágio ruim do ciclo e quando o país voltar a crescer, podemos ter um superávit primário muito elevado, para o qual a PEC não dá destinação certa".
De fato. Não há qualquer dispositivo na PEC que flexibilize a regra. Sabemos que durante fortes crescimentos econômicos os cofres públicos são significativamente irrigados por arrecadações adicionais. A grande dúvida: o valor arrecadado que se situar acima do nível inflacionário ficará retido? Acredito que não. Não faz sentido. Então, em que o governo poderá aplicar as “sobras” de caixa? Respondemos: em despesas nominais, já que a PEC 241 veda sua aplicação em despesas primárias, conforme dissemos acima. E quais são essas despesas nominais? Do que elas são compostas? Essencialmente, elas também se compõe de três grupos de despesas: pagamentos destinados à amortização da dívida pública, concessões de empréstimos e pagamento de juros (decorrentes de empréstimos e operações financeiras contraídos). Nesse sentido, o discurso da (agora) oposição petista ganha sentido.
Enquanto durar o período recessivo provavelmente não sobrará muito em caixa para gastar. Daí o “aperto” proposto pelo Governo Temer. Todavia, e se daqui a dois, quatro ou cinco anos o cenário mudar (para melhor, é claro!)? Qual destino será dado às somas de recursos arrecadados adicionalmente? Não haverá outra saída senão poupa-lo – o que, sinceramente, duvido muito – ou destiná-lo ao financiamento de encargos financeiros, isto é, às despesas nominais. A PEC 241 é profundamente pessimista. Da forma como está, ela não acredita numa recuperação econômica num prazo menor que dez anos. É isso que sinaliza seu texto.
O mais racional é que a PEC 241 autorizasse a aplicação dos recursos excedentes em investimentos públicos, gerando emprego e renda, e contribuindo para o desenvolvimento e crescimento econômico. Ou, pelo menos, os destinasse ao pagamento das obrigações decorrentes do déficit orçamental. Se há déficit é porque haverá passivo (a descoberto). Se há, passivo, por que não quitá-lo? O equilíbrio fiscal passa também pela eliminação gradual dos passivos.
Em 1939, Joseph Schumpeter, economista e cientista político austríaco, definiu quatro fases para a duração de um ciclo econômico: o boom, a recessão, a depressão e a recuperação. Pelos dados colhidos da economia brasileira nos últimos dois anos, estamos na terceira etapa, antecedendo, portanto, a fase da prosperidade, isto é, da recuperação econômica. Diante desse cenário, a PEC 241 é assaz negativista, acreditando que ainda teremos que aguardar mais dez anos para que o trem entre nos trilhos, uma vez que somente daqui a dez anos ela autoriza sua revisão na trajetória inicialmente prevista.
Na minha opinião esse prazo é demasiadamente elástico. Regras similares de contensão de gastos públicos adotados em outros países como Finlândia, França e Holanda situam o momento revisional a cada quatro anos. A meu ver, um período mais razoável e prudente, suficiente para que sejam adotadas ou não novas medidas.
Outro ponto que tem sido bastante questionado é quanto aos gastos em saúde e educação. Conforme todos sabem, a União é obrigada a aplicar um mínimo da receita de impostos em saúde e educação. A partir da vigência da PEC 241 o volume de gastos nessas duas áreas também ficará mitigado, o que poderá representar um duro golpe na (já combalida) qualidade dos serviços, especialmente os relacionados à saúde. Também as críticas têm fundamento.
Pelo texto da PEC 241 o limite global de gasto corresponderá à soma dos limites individuais de cada Poder (Legislativo, Judiciário, Executivo) acrescidos dos limites dos chamados órgãos com autonomia administrativa e financeira: Tribunal de Contas da União, Ministério Público da União e Defensoria Pública da União. Resumidamente:
Limite global = Limite do Legislativo + Limite do Judiciário + Limite do Executivo + Limite do TCU + Limite do MPU + Limite da DPU.
Tais limites de gastos (para um dado exercício), conforme dissemos, corresponderá à despesa realizada no exercício anterior acrescida da taxa de inflação ocorrida no mesmo período.
Na hipótese do limite do Executivo federal, a folga orçamentária terá que ser distribuída entre todos os gastos do próprio Executivo, de tal forma que não comprometa a prestação dos serviços públicos. Nesse cenário, todos os setores irão concorrer ao bolo orçamentário excedente. Se houver gordura suficiente para garantir o funcionamento da máquina governamental e ao mesmo tempo atender ao mínimo a ser aplicado em saúde e educação, tudo bem. O problema é quando os recursos forem rarefeitos. Aí a população dependerá de uma boa dose de boa vontade do Poder Público federal para priorizar os gastos com saúde e educação que excederem a taxa inflacionária, ou seja, que demandarem investimentos superiores ao teto inicialmente projetado. E sabemos que tais áreas – especialmente a saúde – são de difícil controle, pois sofrem a todo o instante a influência de variáveis exógenas difíceis de serem controladas. Como não gastar mais para salvar vidas?? O governo federal terá de reduzir ainda mais os limites de outras áreas para alocar recursos excedentes na saúde e na educação, se quiser atender a demandas da população que se manifestarem acima dos índices inflacionários. A dúvida: até que ponto os interesses político-partidários irão interferir nesse processo decisório? Não sabemos. É uma incógnita. De uma certa forma, o governo Temer ficará com um cheque em branco na mão. Destaque-se, por oportuno, que a PEC 241 revoga o art. 2º da Emenda Constitucional nº 86, publicada em março/2015. Para quem não lembra, essa Emenda criou o chamado orçamento impositivo (que de impositivo, na verdade, não tinha nada). E o que dizia o art. 2º da EC nº 86? Vejamos:
Art. 2º O disposto no inciso I do § 2º do art. 198 da Constituição Federal será cumprido progressivamente, garantidos, no mínimo:
I – 13,2% (treze inteiros e dois décimos por cento) da receita corrente líquida no primeiro exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional;
II – 13,7% (treze inteiros e sete décimos por cento) da receita corrente líquida no segundo exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional;
III – 14,1% (quatorze inteiros e um décimo por cento) da receita corrente líquida no terceiro exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional;
IV – 14,5% (quatorze inteiros e cinco décimos por cento) da receita corrente líquida no quarto exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional;
V – 15% (quinze por cento) da receita corrente líquida no quinto exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional.
Ou seja, o dispositivo obrigava a União a, progressivamente, ampliar os investimentos em saúde nos cinco exercícios subsequentes, a partir da promulgação da EC nº 86/2015. Mas ele foi revogado. E agora? Retorna a regra anterior? Haverá repristinação da norma primitivamente revogada?
Entendo que a medida mais prudente seria deixar os gastos com saúde e educação fora do teto, condicionados, evidentemente, aos excedentes de arrecadação futuros. O discurso seria mais convincente e, convenhamos, mais humanitário.
Por fim, há também uma discussão acerca da constitucionalidade da PEC 241.
Conforme outrora referido, a proposta fixa, para os próximos 20 anos, o teto máximo das despesas primárias da União. Ora, é sabido que vigora em nosso País a anualidade orçamental, isto é, a cada ano o legislativo renova a autorização orçamentária a partir de uma proposta formulada pelo executivo. A PEC 241 põe por terra essa regra na medida em que ela estabelece um mecanismo plurianual de contensão dos gastos públicos primários federais. Ou seja, não haverá muita margem para o legislativo decidir acerca do quanto autorizar. Encerrado o exercício e calculado o índice inflacionário, cada Poder/órgão já saberá o limite de gastos que terá de respeitar para o próximo exercício. Se não suprime, a proposta “arranha” a separação dos Poderes prevista e garantida pelo inciso III, § 4º, do art. 60 da CF/88. Mas essa é uma discussão para os constitucionalistas. Por ora, arrisco dizer que questionamentos como esse muito provavelmente baterão às portas do Supremo Tribuna Federal, caso a PEC 241 seja aprovada da forma como está.
É aguardamos o desenrolar dos fatos.
ALIPIO REIS FIRMO FILHO
Conselheiro Substituto/TCE-AM